O desenho de Leonardo

Ciência    Expresso - Actual 23
/10/2004

O homem de Vitrúvio

Texto de Nuno Crato

«O Homem de Vitrúvio!» exclamou Langdon. O conservador Sauniére criara com o seu corpo uma réplica em tamanho natural do mais célebre desenho de Leonardo Da Vinci. À volta, tinha descrito um círculo. No seu próprio estômago, tinha desenhado a sangue uma estrela de cinco pontas.

Esta é uma das cenas introdutórias d’O Código Da Vinci. Nas 500 páginas que seguem, o professor Langdon voltará a explicar a geometria da estrela e a figura do Homem de Vitrúvio. Mistura factos com mitos, pois tudo é permitido num romance. Mas o leitor tem o direito a separar a realidade da ficção.

A estrela de cinco pontas, também chamada pentagrama, é um objecto geométrico que tem sido explorado há milénios, pois é fácil formá-la com cinco traços simples e o resultado é muito curioso. Aparece como símbolo místico em várias civilizações, umas vezes associada à divindade suprema, outras ao demónio. Colocada «de pé» relembra a figura humana. Com duas pontas para cima, sugere um animal cornudo, naturalmente demoníaco. Nesta acepção mágica é muitas vezes designada como pentáculo.

Os gregos estudaram geometricamente o pentagrama. O matemático Euclides (fl. 300 a.C.) ensinou a construí-la com régua não graduada e compasso, o que lhe conferiu uma dignidade geométrica clássica. Revelou também algumas das suas curiosas propriedades.

Se unirmos uma ponta da estrela com as duas opostas ficamos com um triângulo isósceles. Esse triângulo tem dois ângulos de 72º e um terceiro de 36º, portanto metade de cada um dos maiores. A um polígono destes chama-se triângulo dourado. Curiosamente, se bissectarmos um dos ângulos maiores dividindo o triângulo original em dois, o triângulo mais pequeno resultante é semelhante ao original, ou seja, é de novo um triângulo dourado. Dividindo este triângulo pelo mesmo processo, pode construir-se uma sucessão infinita de triângulos dourados encaixados.

Outra sucessão geométrica curiosa pode ser construída notando que as pontas do pentagrama desenham um pentágono regular que envolve a estrela. Olhando o seu interior, voltamos a descobrir um pentágono regular. Isso significa que se pode construir uma sucessão infinita de pentágonos e pentagramas encaixados.

Mais curioso ainda: o rácio entre um lado maior de um triângulo dourado e o menor é um número irracional aproximadamente igual a 1,618. Isso significa que a distância de uma ponta da estrela a uma das pontas opostas é igual a esse número vezes a distância entre duas pontas contíguas. Mas as surpresas não param: o rácio entre esta última distância e o comprimento de uma haste da estrela é de novo esse estranho número. O leitor está a adivinhar: trata-se do mágico número dourado ou Fi, tantas vezes referido no romance de Dan Brown. O mesmo número que aparece como limite da razão entre termos consecutivos da sucessão de Fibonacci. Não admira que o autor d’O Código Da Vinci, vocacionado para a numerologia e o hermetismo, tenha ficado seduzido com este número maravilhoso.

Dan Brown volta a encontrar o número Fi na figura do Homem de Vitrúvio, o desenho de Leonardo. Mas aí inventa relações inexistentes. Na realidade, esse desenho baseia-se em proporções simples para a figura humana, proporções expressas em números inteiros e não em números irracionais como o é Fi.

Leonardo seguiu as indicações do arquitecto romano Marcus Lucius Vitruvius Pollio (c. 90 - c. 20 a.C.), conhecido como Vitrúvio. Na sua obra Os Dez Livros de Arquitectura, descreve as proporções ideais entre as diversas partes do corpo humano. «O pé é a sexta parte da altura do corpo», escreve por exemplo, «e o cotovelo a quarta parte». Defende que a construção dos edifícios deve também seguir proporções bem definidas, partindo de «um número perfeito». Em seguida, debate se esse número é dez, «como o estimou Platão», ou seis, «como os matemáticos querem, pois os divisores deste número somados igualam o próprio número» (1 + 2 + 3 = 6).

Em Vitrúvio não se vislumbram vestígios do número de ouro. Contrariamente a uma ideia muito difundida, mesmo em trabalhos académicos, no desenho de Leonardo também não. Faça o leitor a experiência e meça com rigor a razão entre o raio da circunferência e o lado do quadrado do Homem de Vitrúvio. Em matérias numerológicas, a régua e a fita métrica tiram muitas teimas...